
Na série de matérias sobre as edições do Festival de História, o portal resgata a reportagem da jornalista Denise Menezes sobre o papel da imprensa no golpe de 1964, tema que continua mais do que atual nos dias sombrios que vivemos.
Fonte recorrente da historiografia mundial, a imprensa esteve no centro das discussões promovidas no 2º fHist em Diamantina, em 2013. O seu comportamento, no Brasil, durante os 21 anos de regime militar, entre 1964 e 1985, foi o tema da mesa "Ditadura e jornalismo: a história contada a quente", que teve como convidados os jornalistas Ricardo Kotscho, Fernando Morais e Paulo Markun. Em pauta, uma história ainda pouco contada: o apoio e, em certos casos, o colaboracionismo de parte da mídia brasileira ao golpe que instaurou no país a tortura como uma política de Estado e uma série de restrições à liberdade, como a censura prévia, a partir do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968.
"Os grandes veículos de comunicação e seus responsáveis contribuíram claramente para o golpe e o apoiaram", lembrou Paulo Markun, que iniciou sua carreira em 1971, quando a imprensa já estava sob censura, foi preso e torturado em 1975, na mesma onda de prisões que levou ao assassinato de Vladimir Herzog, de quem era colega na TV Cultura de São Paulo e amigo. Entretanto, ele lembrou que o apoio da imprensa ao golpe é ainda pouco abordado pelos livros de história.
Segundo Markun, entre os jornais, o caso mais expressivo de apoio ao regime e às atrocidades promovidas por ele é o da "Folha da Tarde", jornal já extinto do Grupo Folha, que prestava serviço aos órgãos de segurança da ditadura. "Esse serviço incluía a cessão de veículos com a logomarca do jornal aos órgãos de repressão, como fachada ou disfarce, que eram usados na captura dos opositores do regime, os chamados (pela ditadura) de subversivos", afirmou o jornalista.
O apoio da "Folha da Tarde" se dava ainda com a publicação de notícias falsas que, de alguma forma, justificavam os atos dos militares ou criavam versões para fatos que poderiam manchar a imagem do governo. "Eram notícias de consequências muito graves porque traziam versões mentirosas sobre a prisão e morte de opositores do regime, que contribuíam, inclusive, para a captura dos companheiros de opositores presos", acrescentou.
O jornalista e escritor Fernando Morais, que durante a ditadura atuou em veículos como as revistas "Visão" e "Veja", classificou como sórdido o papel exercido por alguns veículos naquela época. "E a "Folha da Tarde" foi o jornal que melhor encarnou esse serviço sujo prestado por parte da imprensa brasileira", disse, lembrando do caso da prisão e morte do petroleiro Joaquim Alencar de Seixas.
Militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Joaquim foi capturado, junto com seu filho Ivan, aos 16 anos na época, e morto pelo regime, em 1971. A sua morte teria sido uma das ações da ditadura em represália ao assassinato do empresário Albert Henning Boilesen, então presidente da Ultragaz e diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), tido como financiador e instrutor de torturas dos órgãos de repressão. Boilesen foi morto por membros do MRT e da Aliança Libertadora Nacional (ALN), dois grupos que participaram da luta armada contra o regime.
O jornalista relatou que durante depoimento na Comissão Nacional da Verdade, no ano passado, Ivan Seixas contou como a notícia publicada pela "Folha da Tarde" foi usada pelos militares para minar qualquer possibilidade de resistência do seu pai. "O Joaquim ainda vivo, preso no DOI-CODI, estropiado de tortura, e os militares chegaram com o exemplar daquele dia da "Folha da Tarde", dizendo que ele tinha fugido, resistido a tiros e, por isso, tinha sido morto, na rua. Eles entregaram o jornal para o Joaquim e disseram: olha o que aconteceu com você. Você morreu ontem", narrou Morais.
Outro exemplo do comportamento das empresas de comunicação, destacou Markun, se deu no noticiário, de vários jornais, da prisão e morte do jornalista Vladimir Herzog. Segundo ele, a versão publicada à época por diversos veículos é mentirosa do começo ao fim. "O Globo", "Folha da Tarde" e o "Jornal do Brasil", por exemplo, incorporavam como verdadeira a versão de suicídio do II Exército, responsável pela operação que culminou com a morte do jornalista.
"No jornal "O Globo", a versão do II Exército encabeçava o noticiário, com algo assim como título: Comando do II Exército explica suicídio de jornalista. Já a nota do Sindicato dos Jornalistas (de São Paulo) veio no pé, com o título: Sindicato dos Jornalistas lamenta a morte de Vladimir Herzog. Veículos como o "Estadão" entraram tardiamente na cobertura, como consequência de pressão do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo", relembrou
Tímidas autocríticas
Lançado em 2004, no aniversário de 40 anos do golpe, o livro "Cães de guarda", da historiadora Beatriz Kushnir, tratou do apoio de parte da imprensa ao regime, mas somente em 2011 o Grupo Folha se manifestou sobre isso, num texto em que fazia a retrospectiva histórica da empresa. "A Folha apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa brasileira. Não participou da conspiração contra o presidente João Goulart, como fez o "Estado", mas apoiou editorialmente a ditadura, limitando-se a veicular críticas raras e pontuais", dizia o texto, sem esclarecer o papel da "Folha da Tarde" e sem deixar de alfinetar um de seus principais concorrentes, o "Estado de São Paulo".
Nos últimos meses, com o papel da imprensa sendo questionado pela cobertura tendenciosa das Manifestações de Junho, foi a vez das Organizações Globo, maior conglomerado de mídia do país, justificarem seus atos. Em 31 de agosto, "O Globo" publicou um editorial onde classificou como um erro o apoio do grupo ao golpe. "Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro", dizia o texto.
Mas a empresa fez questão de mostrar que não estava sozinha no apoio, como fez o Grupo Folha. "O Globo", de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como "O Estado de São Paulo", "Folha de São Paulo", "Jornal do Brasil" e o "Correio da Manhã", para citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da população, em apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas no Rio, São Paulo e outras capitais".
Além disso, "O Globo" tentou justificar o "erro" como uma posição razoável diante da situação política do país à época. "Naqueles instantes, justificava a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos (Jango era criticado por tentar instalar uma "república sindical") e de alguns segmentos das Forças Armadas".
Alheio à autocrítica das Organizações Globo, Paulo Markun insistiu que é preciso rever essa ideia consolidada no país de que a imprensa brasileira resistiu ao golpe militar. "Essa versão de que houve um combate incisivo da imprensa contra a ditadura não procede. Houve a tentativa de resistência de alguns profissionais, de parte dos profissionais. Houve, sim, a insatisfação de alguns patrões que descobriram, mais dia, menos dia, que aquilo (a ditadura) não era o que eles tinham sonhado lá, quando aconteceu o golpe, e que passaram a resistir. Mas não foi essa coisa que a gente vê nas novelas ou nos filmes de época. (A história) não é bem assim", afirmou.
Vozes isoladas
Markun lembrou no fHist que, apesar de ter também apoiado o golpe, o "Correio da Manhã" foi um dos primeiros a rever a sua posição e ainda em 1964, por meio do trabalho de jornalistas, como Carlos Heitor Cony e Márcio Moreira Alves, começou a denunciar os crimes do regime. Na época não havia ainda a censura prévia, instaurada somente quatro anos depois.
"O Cony, ainda na ativa como colunista da Folha, faz ainda nos primeiros momentos do governo militar, a partir do Ato Institucional Número 2 (AI-2) uma série de crônicas, agressivas e irônicas, contra a ditadura e é processado pelo ministro do Exército, Marechal Artur da Costa e Silva", contou. O processo, disse Paulo Markun, é revelador de como era desigual a relação da imprensa com a ditadura.
Carlos Heitor Cony foi obrigado a prestar depoimento no gabinete do ministro que o processava. "Mesmo com o constrangimento e as ameaças de morte que vieram após a publicação das crônicas, Cony manteve, com apoio do jornal, a sua posição e só desiste de publicar suas críticas, um pouco mais tarde, ao constatar que a sua presença ali estava inviabilizando economicamente o jornal", informou.
Já o jornalista Márcio Moreira Alves que, dois anos mais tarde seria eleito deputado federal pelo MDB, no antigo estado da Guanabara, logo após a instauração do regime, em 1964, se opõe a ele e começa a denunciar os crimes. Entre os crimes, Márcio - que seria mais tarde assassinado pela ditadura - já citava a tortura que até recentemente, antes das investigações da Comissão Nacional da Verdade, era desconsiderada ou tida como pontual até 1968, nos primeiros quatro anos de governo militar.
Com as denúncias de torturas publicadas por Márcio no "Correio da Manhã", que naquele momento acreditava-se terem ocorrido com mais intensidade no Nordeste, o governo enviou um emissário à região para apurar os fatos. "O emissário foi o general Ernesto Geisel, que mais tarde, entre 1974 e 1979, seria o penúltimo presidente militar do Brasil. O Geisel vai ao Nordeste, avalia a situação e faz um relatório que até hoje não foi tornado público. A ditadura dá o caso como encerrado e declara que os casos de tortura eram pontuais", lembrou Markun.
Artimanhas contra a censura
A partir de 1968, com a instauração do AI-5, os jornalistas, já com apoio de seus patrões em menor ou maior escala, começam a desenvolver estratégias para levar ao público as informações que lhes eram sonegadas pelo regime. Muitas empresas conviviam com um censor instalado dentro de sua redação. Outras tinham que mandar o material a ser publicado para avaliação do governo em Brasília. E algumas recebiam por telegrama enviado pelo governo os fatos que deveriam ser descartados pelo noticiário.
Fernando Morais lembrou as artimanhas usadas pelo "Jornal da Tarde", que publicava receitas culinárias, nem sempre completas, nos espaços reservados a matérias censuradas. No "Estado de São Paulo", onde trabalhava Ricardo Kotscho, páginas dos Lusíadas, de Camões, substituíam o material vedado pelo censor. Na "Veja", Mino Carta publicava ilustrações de demônios medievais no espaço reservado às reportagens limadas pela censura.
No "Estadão", contou Ricardo Kotscho, uma invenção da época foi a pirâmide "desinvertida". "Um princípio básico do jornalismo é a pirâmide invertida. Você começa o texto pelo mais importante e vai dando os detalhes do fato ao longo da matéria. Nós fazíamos o contrário, porque sabíamos que o censor muitas vezes chegava à noite no jornal cansado e não lia o texto todo de cada matéria ou reportagem. Então começávamos por uma bobagem e colocávamos a verdadeira notícia dentro do texto. Muitas vezes, passava", disse.
"Cada veículo desenvolvia a sua estratégia. Num primeiro momento, quando o leitor se deparava com esse tipo de coisa, ele até poderia julgar que se tratava de um erro de revisão. Mas da segunda, da terceira vez, já notava que ali tinha alguma coisa errada. Então conseguíamos o nosso objetivo", acrescentou Morais.
Ex-secretário de Imprensa do Governo Lula, entre 2003 e 2004, repórter do "Estadão" por longo período, quando publicou entre outras reportagens uma, em 1976, sobre a prisão e morte, pelos órgãos de repressão, do operário Manoel Fiel Filho, e outra sobre as mordomias de altos funcionários do governo, que lhe renderam um "exílio" de dois anos na Alemanha, como correspondente do Jornal do Brasil, Ricardo Kotscho lembrou que para conseguirem que os fatos censurados na imprensa chegassem ao público grupos de jornalistas faziam palestras pelo Brasil, em igrejas, universidades e sindicatos. Outra estratégia, acrescentou Markun, era a de levar a notícia para a imprensa internacional, por meio dos exilados políticos.
Para Kotscho o basta à ditadura militar foi dado pelos jornalistas e pela sociedade brasileira a partir da morte de Vladimir Herzog, quando o governo não conseguiu consolidar a sua versão de suicídio e houve, depois de muitos anos, uma grande manifestação pública, na Praça da Sé, em São Paulo. "Foi um ato ecumênico, liderado por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo pastor James Wright, o rabino Henry Sobel, e o então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas", destacou.